sexta-feira, fevereiro 04, 2005

Passagem

Do primeiro capítulo de "O real cara e coroa, o cinema de Abbas Kiarostami", de Youssef Ishaghpour

1. Fotografias
Eternidade-de-efêmero: presença-de-ausência da imagem



"Talvez nos reste alguma árvore na colina, onde a possamos rever todos os dias..." (Rilke). A árvore isolada na colina: ela está no centro do caminho traçado por Kiarostami em Onde fica a casa do meu amigo? e no alto da estrada que conduz a busca em E a vida continua. É sob essa "árvore na colina" que o senhor Badii gostaria de ser enterrado em Gosto de cereja, e, no começo de O vento nos levará, uma árvore isolada marca o ponto de onde as colinas descem rumo a esse lugar em que se esclarece a origem do amor de Kiarostami pelas paisagens.
Árvore cósmica, vínculo da terra e do céu, eixo do mundo nas antigas mitologias... agora a árvore talvez seja o que nos restou... A "árvore isolada na colina" tem sido um dos motivos constantes das fotografias de Kiarostami, e isso há vários anos, antes mesmo de aparecer em seus filmes. Expostas em galerias ou bem reproduzidas em um livro, todas elas são fotografias de paisagens: imagens da natureza sem homens, revelando-se ao olhar de uma solidão essencial em busca de absoluto. "Em verdade, é estranho não mais habitar a terra, não praticar mais os costumes recém-aprendidos, não mais conferir às rosas, nem a outras coisas promissoras, a significação de um futuro humano..." (Rilke).

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"Os primeiros anos da revolução refrearam nosso trabalho. Certo dia em que eu não tinha nada o que fazer, comprei uma câmara Yashica bem barata e tomei o caminho da natureza. Eu queria me confundir com ela. Ela me conduzia. [...] Minhas fotografias não são o resultado de meu amor à fotografia, mas do amor que dedico à natureza. [...] Durante muitos anos eu deixava a cidade e me sentia muito melhor. Observar a natureza era uma espécie de calmante. Ela tem uma influência quase mágica sobre mim." Trata-se então de retornar "às fontes": "Para quem nasceu em um apartamento e está habituado aos grandes edifícios, aos carros, aos engarrafamentos, aos túneis, à linguagem publicitária e cuja vida se passa sob um céu cinzento e encoberto, a natureza tem uma significação inteiramente diversa. Em minha opinião, essa natureza é o oposto da natureza humana e de suas necessidades. Nós tendemos muitas vezes a esquecer essa realidade".
A expressão "natureza oposta à natureza humana" parece ambígua, talvez por conta da tradução. Ela pode significar a idéia comum sobre a "natureza" alienante da moderna vida citadina, estranha à verdadeira natureza do homem. Ou então o "inteiramente outro" da natureza que partilha do sagrado, oposta ao homem na medida em que este, mesmo exilado, não aspira mais a ela, a reencontrar a unidade e a intimidade nessa contemplação-criação que revela a sua beleza.

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Mas é o "inteiramente outro" - Kiarostami certa vez evocou "a natureza e o ser" - que se pressente diante das fotografias. Sua beleza, a aparição de seu enigma, o visível de seu invisível aparece para o homem como sua própria negação. Nela, ele vê sua própria ausência: a natureza, com o indizível de seu mistério, tendo existido antes dele e lhe sobrevivendo, dispensa-o perfeitamente. Mas se, na contemplação da beleza, o homem sente sua própria solidão de ser mortal, a beleza, em sua aparição, paradoxalmente lhe revela, por via negativa, a sua finitude e a sua eternidade de ser mortal-imortal. O "inteiramente outro" da natureza, separado, intocável, inabordável, essa aparição do longínquo em seu recolhimento só se torna visível graças à discrição, à distância, ao silêncio daquele que vai a seu encontro: por sua intimidade essencial com o numinoso e seu distanciamento de toda condição humana determinada, de todos os vínculos exteriores, por sua própria ausência para si mesmo e sua solidão absoluta. Assim, o próprio efêmero, o "tempo", torna-se imagem da eternidade.