million dollar baby
Gentilmente o poeta António Cabrita enviou-me um poema (inédito), que foi escrito depois de ter visto o filme "Million Dollar Baby", de Clint Eastwood. Tal como eu, ficou emocionado com o filme de Clint, com um dos mais bonitos pactos de amor que já vi em cinema.
MILLION DOLLAR BABY
(ao Clint Eastwood, pela sua dimensão ética
e ao Manuel Cintra Ferreira, pela admiração de que é capaz
pelas coisas certas)
A lâmina roça a face de Deus? A podadeira
num ritmo sincopado, desprendido, decepa
o ramo do jacarandá. Quando um anel
é rasgado e a resina pinga no chão solta-se
na banda sonora o canto das baleias –
aturdido e fundo. É o prémio de tanta deferência,
de alienar-se no vento, gostaria eu que pensasse
o vegetal lenhoso, mas este gorgoleja em seco
a dor. Quantos terços dá uma árvore,
perguntei em miúdo ao meu pai, ateu
ferrenho, que me deu um carolo e fitou
preocupado. E continuou em silêncio a remoer
algo que travejava o espectro do desemprego.
É a auréola dos pobres: a vida como medo
a prestações. Os lenhadores foram recrutados
a magote, alguns sem-abrigo que hoje
desmoerão bucha e moedas para o chapa.
Chegaram numa brigada, em vários camiões,
a missão é transformar o cento de jacarandás
da praça em ledos periscópios para cegos.
Serram de rosto cerrado, impelidos
pela incerteza de terem por precioso osso
e azedume. Broncos como dedos
que vão à chama supondo a dor
clandestina, broncos como o cuspo
que recompensa um mortiço cigarrinho
a mielas, puxam a serra no limite
da asfixia, orla do tempo ingrávido.
Dói ver como o alinhamento das copas
se desfaz aos poucos, tocadas
por furtiva lepra. O corpo chupado,
inextenso, é para eles a superstição
que arrastam. Quantos deles já atirou
a matar? Apesar do inextricável
das sombras, o nado-morto arranhará
o nado-anjo? É a vesânia que reclamam?
Não há ermo como o que lacera a pele
à alma, por incapacidade pra mover
o corpo, no conciso leito da solidão.
Então Clint, deparei com dois homens
dependurados numa serra para dois,
e que, num esgar meio patético,
cortavam um tronco pelo meio.
Quem os incumbiu da tarefa?
Dei conta que era como no ringue,
um combate marcado por avanços,
recuos, fintas, que superavam
as suas forças a tentar que o outro desse
parte fraca, numa cadência de golpes
em que só a árvore arbitra e sangra.
Há quinze minutos tinham fome, agora
uma crista faz da fraqueza coração, sim
meu caro Clint, não basta ser duro,
só o vulnerável conhece a fé. Será
essa a lição do boxe: mostrar que a morte
nunca busca motivo, pois tudo flui
na presença com que precede as feridas?
O ritmo alternava, em dois ou três puxões
firmes um deles julgou ter encostado o outro
às cordas, sente nele uma ferida à escuta,
mas o outro reage, entesa como um caroço,
e enterra fundo, de sacão, o dente da serra,
e tudo recomeça, em plena invernia
suplantam a dor de burro e o ar que aperta
as aduelas. Ignoro se há uma adstringência
no ringue que eleja a dor como mútuo
sentimento, mas na veste ensanguentada
desta árvore enxergo um alívio
que os desvia da ordenha do fado.
Batem-se – como nuvens assanhadas
que farejam relâmpago: pode a vida
consentir que numa parelha de cavalos
reluza o mesmo coágulo fermentado?
Começa a chover, a maioria debanda,
eles continuam impassíveis - fosse
o dilúvio- , este é um combate a dois,
cada um é a humanidade do outro,
o seu espectador, a errabunda chance.
Não se conheciam antes de empurrarem
aquela lâmina de um para o outro,
com uma gana de que até a árvore é
árbitro comovido. Ouve-se Joss Stone
a cantar Right to be Wrong. Assalto
a assalto, a árvore aproxima-se do fio.
Que dívida saldam senão a do mundo
para com eles, abstraindo o conhaque,
os canais por cabo, os filhos na escola
de arte, ou na briga por entrada
em medicina? Socam e reconciliam-se,
que a vida, meu caro Clint, não menoriza,
não subestima. E o golpe mais frágil pode
filar a presa, virar o jogo, valer a million dollar,
baby. A chuva fustiga como um maciço
de arbustos. Nada importa. E eu, faço o relato
para uma rádio com zero de audiência.
António Cabrita
MILLION DOLLAR BABY
(ao Clint Eastwood, pela sua dimensão ética
e ao Manuel Cintra Ferreira, pela admiração de que é capaz
pelas coisas certas)
A lâmina roça a face de Deus? A podadeira
num ritmo sincopado, desprendido, decepa
o ramo do jacarandá. Quando um anel
é rasgado e a resina pinga no chão solta-se
na banda sonora o canto das baleias –
aturdido e fundo. É o prémio de tanta deferência,
de alienar-se no vento, gostaria eu que pensasse
o vegetal lenhoso, mas este gorgoleja em seco
a dor. Quantos terços dá uma árvore,
perguntei em miúdo ao meu pai, ateu
ferrenho, que me deu um carolo e fitou
preocupado. E continuou em silêncio a remoer
algo que travejava o espectro do desemprego.
É a auréola dos pobres: a vida como medo
a prestações. Os lenhadores foram recrutados
a magote, alguns sem-abrigo que hoje
desmoerão bucha e moedas para o chapa.
Chegaram numa brigada, em vários camiões,
a missão é transformar o cento de jacarandás
da praça em ledos periscópios para cegos.
Serram de rosto cerrado, impelidos
pela incerteza de terem por precioso osso
e azedume. Broncos como dedos
que vão à chama supondo a dor
clandestina, broncos como o cuspo
que recompensa um mortiço cigarrinho
a mielas, puxam a serra no limite
da asfixia, orla do tempo ingrávido.
Dói ver como o alinhamento das copas
se desfaz aos poucos, tocadas
por furtiva lepra. O corpo chupado,
inextenso, é para eles a superstição
que arrastam. Quantos deles já atirou
a matar? Apesar do inextricável
das sombras, o nado-morto arranhará
o nado-anjo? É a vesânia que reclamam?
Não há ermo como o que lacera a pele
à alma, por incapacidade pra mover
o corpo, no conciso leito da solidão.
Então Clint, deparei com dois homens
dependurados numa serra para dois,
e que, num esgar meio patético,
cortavam um tronco pelo meio.
Quem os incumbiu da tarefa?
Dei conta que era como no ringue,
um combate marcado por avanços,
recuos, fintas, que superavam
as suas forças a tentar que o outro desse
parte fraca, numa cadência de golpes
em que só a árvore arbitra e sangra.
Há quinze minutos tinham fome, agora
uma crista faz da fraqueza coração, sim
meu caro Clint, não basta ser duro,
só o vulnerável conhece a fé. Será
essa a lição do boxe: mostrar que a morte
nunca busca motivo, pois tudo flui
na presença com que precede as feridas?
O ritmo alternava, em dois ou três puxões
firmes um deles julgou ter encostado o outro
às cordas, sente nele uma ferida à escuta,
mas o outro reage, entesa como um caroço,
e enterra fundo, de sacão, o dente da serra,
e tudo recomeça, em plena invernia
suplantam a dor de burro e o ar que aperta
as aduelas. Ignoro se há uma adstringência
no ringue que eleja a dor como mútuo
sentimento, mas na veste ensanguentada
desta árvore enxergo um alívio
que os desvia da ordenha do fado.
Batem-se – como nuvens assanhadas
que farejam relâmpago: pode a vida
consentir que numa parelha de cavalos
reluza o mesmo coágulo fermentado?
Começa a chover, a maioria debanda,
eles continuam impassíveis - fosse
o dilúvio- , este é um combate a dois,
cada um é a humanidade do outro,
o seu espectador, a errabunda chance.
Não se conheciam antes de empurrarem
aquela lâmina de um para o outro,
com uma gana de que até a árvore é
árbitro comovido. Ouve-se Joss Stone
a cantar Right to be Wrong. Assalto
a assalto, a árvore aproxima-se do fio.
Que dívida saldam senão a do mundo
para com eles, abstraindo o conhaque,
os canais por cabo, os filhos na escola
de arte, ou na briga por entrada
em medicina? Socam e reconciliam-se,
que a vida, meu caro Clint, não menoriza,
não subestima. E o golpe mais frágil pode
filar a presa, virar o jogo, valer a million dollar,
baby. A chuva fustiga como um maciço
de arbustos. Nada importa. E eu, faço o relato
para uma rádio com zero de audiência.
António Cabrita
2 Comments:
tão simpático, não foi?
sim, enviou-me um mail mesmo muito simpático. e já viste?, logo este filme.
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